A quebra do sigilo fiscal aplicado à fiscalização tributária e à investigação criminal: breve análise sobre a constitucionalidade e a possível afronta a direitos fundamentais

Débora Manke Vieira
Fabrizio Bon Vecchio

Página 858

 

INTRODUÇÃO

A legislação sobre sigilo fiscal evoluiu no sentido de dar maior autonomia aos agentes do Fisco, preservando o caráter sigiloso das informações, bem como as possibilidades de preservação do sigilo em relação a terceiros. Em situações de conflito entre princípios constitucionais, há que se levar em conta a ponderação entre estes, o que será efetuado vislumbrando o caso concreto.

Foi esse contexto doutrinário que influenciou fortemente a jurisprudência brasileira e vem influenciando até o presente momento – tanto no âmbito administrativo, quanto também no âmbito do Supremo Tribunal Federal – com uma série de flexibilizações relativas aos direitos e garantias fundamentais dos contribuintes, como o sigilo de dados que foi mitigado pelo “de dever fundamental de pagar impostos”. É neste cenário que a presente pesquisa foi desenvolvida, analisando de forma dogmática se a Constituição Federal permite espaço para esta corrente doutrinária, que comporta a ideia de flexibilização da legalidade e compartilhamento de dados fiscais sigilosos com qualquer órgão de investigação e administração fiscal. A matéria, aliás, está submetida ao Plenário do STF tendo em vista o reconhecimento da sua repercussão geral sob o Tema 990, com a seguinte premissa: “Possibilidade de compartilhamento com o Ministério Público, para fins penais, dos dados bancários e fiscais do contribuinte, obtidos pela Receita Federal no legítimo exercício de seu dever de fiscalizar, sem autorização prévia do Poder Judiciário”. Ao longo deste artigo, revisaremos a jurisprudência das Cortes Superiores, a questão dogmática do embate entre relativização do sigilo fiscal como um direito fundamental e a interpretação extensiva que autoriza os órgãos de persecução fiscal a compartilharem dados sem a prévia autorização judicial.

1. O SIGILO FISCAL COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL

No ordenamento jurídico brasileiro, o reconhecimento do sigilo fiscal como um direito fundamental e autônomo não provém de uma dicção literal e explícita, porém, assim como o sigilo bancário, é entendido pela doutrina como uma espécie de direito fundamental, mais precisamente no que atine à vida privada ou, ainda, à inviolabilidade de dados. Dessa forma, o sigilo fiscal como direito fundamental assegurado pela Constituição Federal (artigo 5º, inciso XII) vem sendo ameaçado pela interpretação dada ao Supremo Tribunal Federal a partir de parâmetros internacionais determinados pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), quando autoriza a flexibilização do dispositivo face a necessidade estatal de assegurar a eficácia da tributação.

Isso porque em 2016, no Recurso Extraordinário n. 601.314, a Corte julgou a constitucionalidade deste dispositivo mudando seu posicionamento, o qual anteriormente entendia por inconstitucional o acesso de dados bancários pela Receita Federal sem a necessidade de decisão judicial – regra de proteção à privacidade quanto à correspondência, às comunicações telegráficas, aos dados e às comunicações – restrito para efeitos de instrução processual penal e de investigação criminal. Agora, a fundamentação que justificou a legalidade é baseada no dever fundamental de pagar tributos e em compromissos internacionais vinculados a evasão.

A Constituição estabelece, de forma cristalina, a regra fechada na definição do sigilo de dados como um direito fundamental. A situação é grave quando se admite a decisão de um agente diretamente interessado no caso, sem a efetiva participação judicial; vez que no Direito Tributário apenas o magistrado tem o interesse necessário para a imposição de um balanço razoável entre o interesse das partes.

Essa decisão baseada no acompanhamento da mudança de cenário do Direito Tributário Internacional não é de competência do Supremo Tribunal Federal, desviando de seu papel de protetor da Constituição em detrimento de recomendações internacionais (LEÃO, 2018, p. 190) – afinal é a doutrina que se ocupa em alargamento dos campos interpretativos.

O artigo 199 do Código Tributário Nacional autoriza o compartilhamento de informações com Estados estrangeiros, desde que estabelecido em tratado, transitando por um sistema de irrestrita proteção de dados fiscais para um sistema de cooperação internacional baseado na troca de informações, visando a restringir gradualmente as alternativas de particulares resguardarem seu patrimônio em paraísos fiscais (FERREIRA NETO; PAULSEN, 2016, p. 14), freando os esquemas tributários mais agressivos.

A necessidade de aumentar a luta contra contribuintes fraudadores não pode se tornar uma “fogueira desproporcional” para todos os valores básicos de proteção das pessoas, que constituem a base do direito internacional e o fundamento das nações civilizadas pelo mundo (PISTONE, 2014, p. 5). Não se pode dar tratamento semelhante ao contribuinte que busca se evadir da tributação, do sujeito investigado por autoridades tributárias.

A vida das pessoas não pode ser devassada além dos limites toleráveis. E a investigação direta, por escapar de qualquer controle, não é boa para a democracia. Decorrente disso, a apuração unilateral, sob essa perspectiva afastada de qualquer garantia para o investigado, não tem lugar nas práticas republicanas que manda observar o due process of law contra o abuso de todos os matizes (NASCIMENTO, 2014, p. 36).

Os dados consolidados sobre movimentações financeiras ou sobre eventuais operações que, pelas suas características, não expõem significativamente a privacidade e a intimidade do titular, são elementos indicativos importantes do cometimento de ilícito. É válida a legislação que estabelece a comunicação automática ao poder público e o seu compartilhamento entre órgãos, desde que mantido o sigilo, de modo a lhes preservar da publicização.

Assim, é hígida a comunicação de operações suspeitas, por instituições financeiras, ao COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) e seu compartilhamento com a Receita, com a Polícia e com o Ministério Público para que sejam tomadas medidas de fiscalização e de investigação a partir de tais dados.

Relativamente a dados cobertos por sigilo, o acesso, pelo Fisco, depende da justificação da sua necessidade para o aprofundamento de uma fiscalização já iniciada e que dependa das informações para prosseguimento. Reforçando o entendimento de que não é proporcional nem adequado dar tratamento análogo ao sujeito que está sendo investigado, e àquele que, sem sombra de dúvida, já cometeu um ilícito fiscal.

O próprio legislador, através da Lei Complementar n. 105/01, realizou o juízo de ponderação, estabelecendo os requisitos necessários para o acesso, facultando ao Fisco que o solicite diretamente. Quando acessados os dados, a autoridade fiscal pode utiliza-los para as verificações próprias às suas funções, devendo, contudo, manter a sua condição de dados sigilosos.

No âmbito do Supremo Tribunal Federal, por sua vez, em decisão monocrática, o Ministro Gilmar Mendes afirmou que “sendo legítimos os meios de obtenção da prova material e sua utilização no processo administrativo fiscal, mostra-se lícita sua utilização para fins da persecução criminal. Sobretudo, quando se observa que a omissão da informação revelou a efetiva supressão de tributos, demonstrando a materialidade exigida para configuração do crime previsto no art. 1º, inciso I, da Lei 8.137/1990, não existindo qualquer abuso por parte da Administração Fiscal em encaminhar as informações ao Parquet.”

Efetivamente, o sigilo não é propriamente quebrado, porquanto não se dá publicidade às informações coletadas. Faculta-se o acesso aos dados para viabilizar a fiscalização, mas mediante compromisso de preservação do sigilo. Fala-se, por isso, de transferência do dever de sigilo – essa possibilidade depende da análise do caso concreto, considerando as suas circunstâncias específicas e o princípio da proporcionalidade – pois as informações sobre sigilo são repassadas ao Fisco, que tem a obrigação de mantê-las sob sigilo fiscal; restando desproporcional quando repassadas ao Ministério Público, quando sem prévia autorização judicial.

A proteção ao binômio privacidade/intimidade impõe alguns cuidados, fazendo emergir o tema do sigilo das comunicações e de dados, com espeque no art. 5º, XII, da Constituição. De qualquer modo, os direitos fundamentais não têm caráter absoluto, admitindo ponderação. Os conflitos entre normas, resolvidos mediante juízos de proporcionalidade, desafiam decisões pela preservação do segredo, pura e simplesmente, pela permissão do acesso a outras autoridades, com transferência do sigilo, ou pelo levantamento do sigilo e publicização das informações.

Esse juízo de ponderação, por vezes, é realizado pelo próprio legislador, observado caso a caso. Envolve questões de mérito – compartilhamento ou não de dados- e de competência – se pode ser realizada pela autoridade administrativa ou se depende de decisão judicial, ou seja, a reserva de jurisdição.

2. RESERVA DE JURISDIÇÃO: RELATIVIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

As competências são atribuídas aos órgãos judiciários para a prática de atos específicos com previsão constitucional, implicando o afastamento da possibilidade de que determinados atos sejam praticados por outras autoridades e órgãos que não estejam autorizados por força constitucional.

No julgamento do Mandado de Segurança 23.452/RJ, restou fixado que “o postulado de reserva constitucional de jurisdição importa em submeter, à esfera única de decisão dos magistrados, a prática de determinados atos cuja realização, por efeito de explícita determinação constante do próprio texto da Carta Política, somente pode emanar do juiz, não de terceiros, inclusive daqueles a quem haja eventualmente atribuído o exercício de poderes de investigação próprios das autoridades judiciais”.

A Reserva de Jurisdição, concebida de forma específica, é utilizada para relativizar determinado direito fundamental – como o sigilo dos dados -, de forma que a restrição do direito da atividade judicante signifique uma garantia para que não se constitua um ato abusivo, mas que sua prática represente tão somente o resultado de uma ponderação dos valores protegidos em face de outros valores de igual relevância como o combate à evasão e à sonegação fiscal. É por esta razão que tais Reservas de Jurisdição surgem de forma específica e explícita, e significam a impossibilidade de que outro órgão, autoridade ou pessoa pratique certos atos, contemplados em um momento prévio à apreciação judicial, como seria normal, e como comumente ocorre com o desempenho ordinário e corriqueiro da função jurisdicional.

O poder judicial é distinto dos demais poderes, podendo ser exercido exclusivamente por agentes investidos na função de julgar. A posição constitucional do juiz não é pautada pela relação de representação ou pelo caráter de representatividade, exigidos para os demais órgãos de soberania. Nas palavras do Gomes Canotilho, os juízes não desenvolvem atividades de direção política, embora administrem a justiça em nome do povo; exige-se que os tribunais tenham acesso direto à Constituição e contribuam para a concretização das normas constitucionais (CANOTILHO, 1998, p. 575).

A atuação do Judiciário é repressiva e surge como regra, em função de casos particulares. Assim, o disciplinamento de choques de direitos fundamentais em situações padrões e normais ficariam carentes do disciplinamento preventivo, passando a receber tratamento, proteção e atuação estatal somente após surgir uma lide e apenas para aqueles que batessem às portas da justiça. A função de ordenação social nesses casos deixaria de ser preventiva, geral e abstrata para ser repressiva (diante do surgimento de uma lide ou de seu justo receio), individual e concreta (FILHO, 2010, p. 4480). Afinal, normas de coerção são ao mesmo tempo normas de liberdade, pois dotadas de uma estrutura “reflexiva”. O Direito retira de sua própria Constituição as condições de sua legitimidade (MELO, 2005, p. 67).

A cláusula de reserva de jurisdição consiste em confiar ao âmbito Judiciário a prática de certos atos que impliquem restrição a direitos individuais especialmente protegidos; a se aceitar a existência de tal cláusula, haveria poderes de investigação que apenas as autoridades judiciais estariam legitimadas a exercer (BRANCO, 2011, p. 898). No Brasil, essa cláusula ganhou destaque após atribuir poderes investigatórios próprios das autoridades judiciais às Comissões Parlamentares de Inquérito, consoante o artigo 58, §3º da Constituição Federal. A lição que se pode extrair é que o problema da reserva de jurisdição não pode ficar restrito ao campo fechado do direito constitucional judiciário, uma vez que este problema invoca princípios estruturantes de toda a ordem constitucional, conduzindo à ideia de que a rejeição da autodefesa ou justiça privada implica a atribuição da função jurisdicional a órgãos imparciais, particularmente qualificados, os quais devem deter o monopólio da jurisdição (CANOTILHO, 2003, p. 668).

3. COMPARTILHAMENTO DE DADOS COM ÓRGÃOS DE FISCALIZAÇÃO TRIBUTÁRIA E DE INVESTIGAÇÃO CRIMINAL

A Constituição Federal, ao cuidar da Administração Púbica, estabelece que “as administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, atividades essenciais ao funcionamento do Estado, exercidas por servidores de carreiras específicas, terão recursos prioritários para a realização de suas atividades e atuarão de forma integrada, inclusive com o compartilhamento de cadastros e de informações fiscais, na forma da lei ou convênio” (art. 37, inciso II, da CF). Por sua vez, as normas gerais em matéria de legislação tributária, disciplinadas pelo Código Tributário Nacional, já previam a cooperação entre os agentes fiscais tributários.

Ainda, o artigo 198 do Código Tributário Nacional, com a redação da LC 104/2001, chancela e disciplina o intercâmbio de informação sigilosa, no âmbito da Administração Pública, determinando que será “realizado mediante processo regularmente instaurado, e a entrega será feita pessoalmente à autoridade solicitante, mediante recibo, que formalize a transferência e assegure a preservação do sigilo”. Desse modo, temos que a transferência de dados ao Fisco, para fins de lançamento tributário, independe de autorização judicial, podendo ser requerida pela própria Receita com fundamento na Lei Complementar n.º 105/01, de constitucionalidade já reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal. Na hipótese de as autoridades policial ou ministerial terem obtido judicialmente o acesso originário aos dados bancários e se depararem com indícios de crime tributário, poderão encaminhá-los ao Fisco com a representação penal para fins fiscais, sem que nisso se possa vislumbrar qualquer irregularidade, até porque os dados permanecerão sob sigilo, nos termos do art. 198 do Código Tributário Nacional. A tese 990 do Supremo Tribunal Federal fixou o tema em dois importantes pontos: (a) é constitucional o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil que define o lançamento do tributo com os órgãos de persecução penal para fins criminais, sem a obrigatoriedade de prévia autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional e (b) o compartilhamento deve ser feito unicamente por meio de comunicações formais, com garantia de sigilo, certificação do destinatário e estabelecimento de instrumentos efetivos de apuração e correção de eventuais desvios.

A quebra de sigilo bancário poderá ocorrer em qualquer fase do inquérito policial, mas deve ser feita mediante ordem judicial, nos termos do art. 1º, § 4º, e art. 3º da Lei Complementar n.º 105/01. Autorizada judicialmente a quebra de sigilo para uso em inquérito policial ou ação penal, costuma ser requerido ao respectivo juízo também o compartilhamento desses dados com a Receita sempre que há indícios de crimes materiais contra a ordem tributária a exigir a prévia constituição dos respectivos créditos tributários. Invariavelmente, esse compartilhamento é deferido. A Lei Complementar n.º 105/01 enseja às autoridades fiscais, desde que haja procedimento de fiscalização instaurado e a necessidade do acesso seja presente e esteja motivada, que solicitem diretamente às instituições financeiras o acesso às movimentações dos seus clientes para fins tributários. No Recurso Extraordinário 601.314, o Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal, tendo como relator o Ministro Edson Fachin, fixou a seguinte tese com repercussão geral: “O art. 6º da Lei Complementar 105/01 não ofende o direito ao sigilo bancário, pois realiza a igualdade em relação aos cidadãos por meio do princípio da capacidade contributiva, bem como estabelece requisitos objetivos e o translado do dever de sigilo da esfera bancária para a fiscal”. Ainda prosseguiu defendendo que os compromissos internacionais combativos à evasão fiscal assumidos pelo Brasil:

“É preciso que se adotem mecanismos efetivos de combate à sonegação fiscal, sendo o instrumento fiscalizatório instituído nos arts. 5º e 6º da Lei Complementar nº 105/ 2001 de extrema significância nessa tarefa. O Brasil se comprometeu, perante o G20 e o Fórum Global sobre Transparência e Intercâmbio de Informações para Fins Tributários (Global Forum on Transparency and Exchange of Information for Tax Purposes), a cumprir os padrões internacionais de transparência e de troca de informações bancárias, estabelecidos com o fito de evitar o descumprimento de normas tributárias, assim como combater práticas criminosas. Não deve o Estado brasileiro prescindir do acesso automático aos dados bancários dos contribuintes por sua administração tributária, sob pena de descumprimento de seus compromissos internacionais.” (STF, ADI 2859, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 24/02/2016, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-225 DIVULG 20-10-2016 PUBLIC 21-10-2016).

Em uma realidade de globalização fiscal, um dos requisitos para que a Lei Complementar 105/01 alcance parâmetros de fiscalização satisfatórios é o Fisco tomar ciência das movimentações financeiras suspeitas que ocorrem tanto no território interno quanto em países e isso só é possível através da transferência recíproca de informações entre os Estados (BASTOS, 2014, p. 43).

O instituto da troca de informações está previsto no modelo da Organização para a Cooperação Econômica e Desenvolvimento (OCDE), onde prevê que as autoridades dos Estados signatários podem trocar informações entre si quando significantes ao cumprimento no estabelecido na Convenção ou na legislação doméstica dos Estados contratantes, desde que não esteja em desacordo com o previsto no tratado – o que possibilitaria um acesso direto a Administração tributária de outros Estados membros com o objetivo de incrementar a fiscalização e expandir a transferência fiscal (SARAIVA FILHO, 2013, p. 256).

De qualquer forma, este compromisso de troca de informações não impõe a um Estado a realizar medidas que sejam contrárias a própria legislação interna, isto é, prestar informações que não possam ser obtidas sob a luz da legislação doméstica ou fornecer informações que comprometam o sigilo de processos.

São válidos não apenas a requisição e o acesso às informações bancárias pelo Fisco e seu uso para fins de constituição do crédito tributário, mas também o compartilhamento desses dados, enquanto integrantes do processo administrativo fiscal, com a Procuradoria da Fazenda para fins de cobrança e com o Ministério Público para fins penais. Efetivamente, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu que é possível a utilização de dados obtidos pela Secretaria da Receita Federal, em regular procedimento administrativo fiscal, para fins de instrução processual penal. Restou fixado que não há que se falar em ilicitude das provas que embasam a denúncia; porquanto, assim como o sigilo é transferido, sem autorização judicial, da instituição financeira ao Fisco e deste à Advocacia Geral da União, para cobrança do crédito tributário, também é ao Ministério Público, sempre que, no curso de ação fiscal de que resulte lavratura de auto de infração de exigência de crédito de tributos e contribuições, se constate fato que configure, em tese, crime contra a ordem tributária.70

Não se pode cogitar a existência de sigilo de informações entre órgãos do Estado, no caso entre o Ministério Público e a Administração Fazendária. A interpretação literal e restrita do art. 8º da Lei Complementar nº. 75/93 (Lei Orgânica do Ministério Público) seria o bastante para afirmar a legitimidade do Parquet na requisição direta de informações, mesmo quando protegidas constitucionalmente por sigilo, pois a norma em questão é categórica ao autorizar a requisição de informações e documentos de qualquer natureza, não sendo lícito a nenhuma autoridade recusar-se a atender a requisição sob o argumento do caráter sigiloso da informação ou documento pretendido (CALABRICH, 2006, p. 186).

A Constituição Federal, ao cuidar da Administração Pública no artigo 37, inciso II, da Constituição Federal, estabelece que as administrações tributárias da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal atuarão de forma integrada, inclusive com o compartilhamento de cadastros e de informações fiscais, na forma da lei ou convênio. Já o artigo 199 do Código Tributário Nacional prevê a assistência mútua com permuta de informações para a fiscalização de tributos.

Após a ocorrência de um fato gerador, o Direito Tributário passa a vigorar no estrito cumprimento da legislação quando os sujeitos passivos cumprem suas obrigações. Esses fatos dependem de atos fiscalizatórios das autoridades fiscais, afinal a informação é elemento essencial para viabilizar o sucesso do poder de polícia, o que se pressupõe o acesso à informação.

Diversas obrigações tributárias acessórias têm como objeto o registro ou a declaração de dados, de modo que o Fisco possa ter acesso para a verificação do cumprimento das obrigações principais e, eventualmente, identificar infrações cometidas. Ainda, o artigo 195 do Código Tributário Nacional estabelece que o Fisco tem ampla prerrogativa de examinar mercadorias, livros, arquivos, documentos, papéis e efeitos comerciais ou fiscais, dos comerciantes industriais ou produtores, determinando, ainda que os obrigados devem conservar os livros obrigatórios de escrituração comercial e fiscal e os comprovantes dos lançamentos neles efetuados até que ocorra a prescrição dos créditos tributários decorrentes das operações a que se refiram. É notório que diante da complexidade e constante processo evolutivo da sociedade, o direito é por essência dinâmico e mutável, razão pela qual suas normas devem ser renovadas de acordo com o comportamento dos membros da sociedade. Diante dessa inquietante realidade acerca da identificação patrimonial, é relevante que normas sejam produzidas para garantir a eficiência da fiscalização e coibir este comportamento dos contribuintes que se furtam da sua obrigação de pagar tributos (DINIZ, 2011, p. 87).

 


70 STF, HC 422.473/SP, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 20/03/2018, DJe 27/03/2018.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É certo que, através dos dados obtidos na movimentação financeira do contribuinte, o Fisco pode concluir pela ocorrência ou não de indícios de sonegação, uma vez que os dados bancários acabam muitas vezes por confirmar ou contraditar as declarações fiscais do contribuinte. Essas divergências entre a necessidade ou não de autorização judicial não pode se basear em padrões de comportamento fraudulentos, afinal, antes da efetiva investigação o contribuinte não pode ser punido ou ter seus direitos sonegados por autoridades fiscais de modo discricionário. Assim como também não pode por presunção ser tratado como infrator.

O que se percebe é que, hodiernamente, o Supremo Tribunal Federal busca maior aproximação e concretização de recomendações internacionais contra evasão fiscal, mas furta-se de sua competência de guardião da Constituição. Resta claro que essas recomendações trazem inúmeros benefícios, sejam de transparência nas relações tributárias, sejam padrões de comportamento que estimulam a idoneidade fiscal; ou da efetiva adoção a modernas práticas de Compliance, porém, o que não se deve permitir é que a fiscalização tributária ganhe “super poderes”, sob pretexto da necessidade assegurar a eficácia da tributação, sob pena dos contribuintes verem suprimidos grande parte de seus direitos fundamentais garantidos pela nossa Constituição Federal.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BASTOS, Frederico Silva. Transferência Fiscal Internacional e Administração Tributária em rede: o sistema regulatório e prático do intercâmbio de informações tributárias no Brasil e os direitos e garantias fundamentais dos contribuintes. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Fundação Getúlio Vargas, 2014.

BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MEDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

CALABRICH, Bruno Freire de Carvalho. Investigação criminal pelo Ministério Público: fundamentos e limites constitucionais. 2006. 236 f. Dissertação de Mestrado em Direitos e Garantias Constitucionais Fundamentais. Vitória: Faculdade de Direito de Vitória, 2006.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998.

DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito: introdução à teoria geral do direito, à filosofia do direito, à sociologia jurídica. 22ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

FERREIRA NETO, Artur M.; PAULSEN, Leandro. A Lei de Repatriação: regularização cambial e tributária de ativos mantidos no exterior e não declarados às autoridades brasileiras. São Paulo: Quartier Latin, 2016, p. 14.

FILHO, Juraci Mourão Lopes. O limite à atuação jurisdicional dos direitos fundamentais como reserva legal. Anais do XIX Congresso Nacional do CONPEDI. Congresso Nacional do CONPEDI, 2010, p. 4476-4487.

MELO, Rúrion Soares. Habermas e a estrutura “reflexiva” do Direito. Revista Direito GV. São Paulo. Vol. 1, n. 1, maio/2005.

NASCIMENTO, Carlos Valder do. Direito Constitucional Penal. Ilhéus: Editus, 2014.

SARAIVA FILHO, Oswaldo Othon de Pontes. O acesso direto aos dados bancários por parte do Fisco: a transferência do sigilo bancário para o sigilo fiscal. São Paulo: Quartier Latin, 2005.

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